quinta-feira, 7 de junho de 2012

Olimpíadas de Filosofia do Estado de SP: encenando o filosofar na Educação Básica



Entre as diversas iniciativas que as universidades brasileiras vêm promovendo para fomentar a discussão filosófica nos níveis fundamental e médio de ensino, há uma que merece destaque especial: as olimpíadas de filosofia. Organizadas pela primeira vez no Brasil em 2008, elas ainda estão em fase de crescimento e consolidação. Essa situação incipiente já permite, contudo, discuti-las e avaliá-las em função de dois aspectos fundamentais: primeiro, como as olimpíadas interferem e contribuem para o trabalho de estudantes e professores da educação básica e, segundo, como elas oferecem uma oportunidade para os pesquisadores avaliarem a situação atual do ensino de filosofia. A Profa. Dra. Patrícia Del Nero Velasco (UFABC), autora de diversos artigos sobre Ensino de Filosofia e do livro "Educando para a argumentação: contribuições do ensino da lógica" (Autêntica), coordenou a I edição paulista das olimpíadas e cedeu à Seção Filosofia na Escola da ANPOF suas reflexões sobre o evento. Segue abaixo o texto reformulado da apresentação da Profa. Dra. Velasco no I Colóquio Nacional do Ensino de Filosofia: o que queremos do filosofar na Educação Básica? (Salvador, dezembro de 2011).

por Patrícia Del Nero Velasco

Os movimentos olímpicos de Filosofia existem há mais de 10 anos na Europa e várias edições já foram realizadas em países da América do Sul, como Argentina, Chile, Colômbia, Paraguai, Peru e Uruguai. A fim de aguçar o interesse dos jovens pela Filosofia, em 1995, no marco do programa “Filosofia e Democracia no Mundo”, a UNESCO aconselhou a promoção das olimpíadas, nacional e internacionalmente. No Brasil, o pioneirismo em sediar o evento é atribuído ao Rio Grande do Sul. A primeira olimpíada neste estado foi organizada em 2008, sob a coordenação do professor Sérgio Sardi, do Departamento de Filosofia da PUC-RS.

Na mesa de abertura da I Olimpíada de Filosofia do Rio Grande do Sul, segundo o Boletim nº 3 de 03 de dezembro de 2008, emitido pelo Fórum Sul de Filosofia, o professor Sardi noticiou que “talvez estivesse neste primeiro encontro o germe de um futuro evento nacional”. Quatro anos mais tarde ainda não podemos anunciar a realização do referido evento nacional, mas ao menos um caminho profícuo nessa direção: em 2012, Porto Alegre sediará a V edição da olimpíada estadual (29/09) e a II Olimpíada de Filosofia com Crianças do Rio Grande do Sul (20/10); Petrópolis, a III Olimpíada Latino-Americana de Filosofia (de 4 a 6/10); em São Paulo, ocorrerá a II olimpíada regional (22/09).

Mas, o leitor poderia indagar, como são as olimpíadas regionais brasileiras? Estas consistem na realização de atividades didáticas de cunho filosófico a partir de um tema geral. Na edição pioneira em SP, assim como na IV edição no Sul do país, a temática que norteou os trabalhos foi: “O mundo é admirável? O que nos torna plenamente humanos?” Em 2012, o tema que subsidiará o evento será: “Qual o custo social do progresso?”

Destinadas a estudantes dos ensinos Fundamental e Médio, abrangendo as redes pública e privada de todo o estado, as atividades que compõem as olimpíadas têm início nas escolas e terminam com uma exposição em um encontro estadual. Trata-se, portando, de um evento filosófico-educacional constituído de duas etapas. Na primeira fase, realizada nas escolas, os professores de Filosofia inserem a temática do ano como conteúdo programático da disciplina, investigando-a e refletindo-a filosoficamente. As atividades didáticas devem incluir a criação de uma apresentação em formato livre: teatro, comunicação oral, poesia, pôster, vídeo, fotografia, desenho e música foram alguns dos trabalhos criados nesta fase para a primeira edição paulista.

No dia do evento ocorre a segunda e última fase das olimpíadas: o momento de apresentação dos trabalhos produzidos em sala de aula. Nesta data, espera-se propiciar aos participantes (alunos, professores, coordenadores, diretores e demais interessados) a oportunidade do diálogo investigativo, da reflexão conjunta sobre o tema abordado em cada edição. Ao contrário do que o nome do evento poderia sugerir, não se almeja nas olimpíadas regionais brasileiras qualquer tipo de competição. A proposta é promover a colaboração, a troca de experiências, acolhendo diferentes perspectivas sobre a temática norteadora do ano.

A I Olimpíada do Estado de São Paulo, sediada na Universidade Federal do ABC (UFABC), em Santo André, reuniu um pouco mais de 400 pessoas: aproximadamente 350 alunos; 35 professores; alguns coordenadores e diretores; e outros tantos pais e mães dos estudantes. Escolas de vinte municípios do Estado de SP se inscreveram: Amparo, Arapeí, Artur Nogueira, Bananal, Bauru, Campinas, Cunha, Guarulhos, Irapuã, Limeira, Mogi das Cruzes, Mogi Guaçu, Paraisópolis, Pilar do Sul, Rio Claro, Santo André, Santos, São Bernardo do Campo, São Paulo e Ubatuba.
Uma avaliação informal da primeira edição paulista das Olimpíadas mostrou que alguns dos objetivos pretendidos com esse movimento olímpico foram alcançados, quais sejam:

1. Promover a integração entre as escolas, os estudantes e os professores participantes, bem como entre a Escola e a Universidade;
2. Agregar os interesses de alunos e professores de Filosofia do Estado de São Paulo (carente de iniciativas deste gênero), criando um espaço de troca de experiências e perspectivas sobre o Ensino de Filosofia;
3. Incitar o espírito crítico e dialógico entre os participantes, propiciando a estes o questionamento, a investigação e a criação de novas possibilidades de pensar através da prática coletiva do filosofar;
4. Estimular a participação dos discentes da Educação Básica como agentes criadores e responsáveis pelas atividades;
5. Fomentar e colaborar com os objetivos do Ministério da Educação ao introduzir a Filosofia como disciplina obrigatória no Ensino Médio.

Os objetivos supramencionados estão intimamente relacionados com o processo de legitimação da Filosofia como disciplina escolar. A valorização desta disciplina nas escolas participantes do evento foi notória.

Do ponto de vista educacional, os professores envolvidos nas Olimpíadas relataram que por conta das apresentações no evento regional, as atividades filosóficas ao longo de todo o ano letivo gozaram de um interesse maior por parte dos alunos. Estes passaram a valorar a disciplina diferentemente de outros anos, quando a importância atribuída às aulas de Filosofia era pouca. A seriedade e estima demonstradas pelos alunos surpreenderam os professores inscritos no encontro.

Contaram também os professores que estudantes de outras séries não participantes, bem como coordenadores e diretores das escolas, mostraram algum interesse pela Filosofia no ano de 2011 – ainda que por mera curiosidade a respeito das olimpíadas. Disseram alguns que o fato de ter sido sediada por uma universidade aguçou a mencionada curiosidade.

Nesse sentido, a pretendida integração entre a Escola e a Universidade deu sinais de ter sido alcançada. Era visível a perplexidade de alguns alunos – principalmente do Ensino Fundamental – diante do fato de se apresentarem em uma instituição de ensino superior, passeando pelos corredores, sendo observados pelos olhares igualmente perplexos dos graduandos da UFABC.

Outro objetivo visado, como supracitado, dizia respeito à integração entre escolas, estudantes e professores. Ao agregar cerca de 30 escolas de diferentes regiões de SP, 350 alunos e 35 professores, as olimpíadas acabaram criando um espaço de rica troca de experiências. As metodologias foram as mais diversas; os formatos dos trabalhos compartilhados foram bastante diferentes; a percepção de que o mesmo tema – O mundo é admirável? O que nos torna plenamente humanos? – poderia ser abordado sob inúmeras perspectivas incitou variadas reflexões.

Sobre este espaço de integração, criação e diálogo filosóficos, lê-se no sítio da IV Olimpíada de Filosofia do Rio Grande do Sul (disponível em: http://www.olimpiadadefilosofia.org...), realizada em novembro de 2011:

Com um espírito de acolhimento das diferenças, as Olimpíadas pretendem convocar alunos para um exercício de investigação solidária, num clima que pretende ser não de competição, mas de colaboração e de estímulo para o pensamento. A ideia é de que a partir da proposta, processos filosóficos criativos sejam construídos através da interlocução, interação e participação autônoma dos ‘colaboradores’. Com a obrigatoriedade da Filosofia no Ensino Médio no Brasil, as Olimpíadas podem se constituir em um polo agregador de interesses de alunos e professores, fortalecendo e contribuindo com os objetivos pelos quais o Ministério de Educação introduziu a Filosofia no Ensino Médio.

Em São Paulo, o espaço mencionado propiciado pelo evento possibilitou, sem dúvida, a vivência do questionamento, do diálogo investigativo, da crítica, da problematização, da argumentação, da conceituação, enfim, do filosofar. Um filosofar sobre as questões norteadoras das olimpíadas e, igualmente, sobre o próprio ensinar Filosofia. Tal qual no relato de Mauricio Langon Cuñaro, Olimpíadas Filosóficas Uruguaias: Uma Experiência que Deve Ser Considerada (publicado no livro Filosofia e Sociedade: perspectivas para o Ensino da Filosofia pela Editora da UNIJUÍ) “tem-se em vista também uma transformação educativa que se responsabilize do pensar por si mesmo, da complexidade do real, da filosofização de toda a educação, a começar pela filosofização do ensino da própria filosofia”.

Professores tiveram a oportunidade de pensar a sua própria prática e foram, como diria Rodrigo Gelamo em seu O ensino da filosofia no limiar da contemporaneidade: o que faz o filósofo quando seu ofício é ser professor de filosofia? (Cultura Acadêmica), “problematizado[s] pela contingência de seu próprio presente e pelo fazer filosófico em seu dever de ofício: ser professor”. Imprescindível movimento, segundo o ensaio de Sílvio Gallo e Walter Kohan, Crítica de alguns lugares comuns ao se pensar a Filosofia no ensino médio, publicado no livro Filosofia no Ensino Médio (Vozes): “O professor que não se assume como filósofo não tem a menor chance de ensinar filosofia, assim como o professor que não se reconhece como pesquisador não poderá fazer outra coisa do que reproduzir aquilo que outros pensaram, uma marca da antifilosofia”.

Alunos, por sua vez, ficaram entusiasmados por serem ouvidos. E por a eles ter sido atribuído o protagonismo da cena. A primazia dada aos estudantes transpareceu na condução das apresentações, nas intervenções nas comunidades de investigação, na ausência de palestras ou comunicações de professores-especialistas. Passaram de espectadores a atores e diretores da encenação. Encenação de suas próprias criações.

Neste sentido, entende-se que a proposta das olimpíadas pode contribuir com o que queremos da Filosofia na Educação Básica.

Que seja parte da cultura do século XXI – que a tradição escolar que justifica e defende a presença da Língua Portuguesa, da Matemática, da Geografia e das demais disciplinas no currículo escolar, passe a justificar e defender igualmente a Filosofia, legitimando-a como disciplina. Que tenhamos, enfim, uma cultura filosófica nas escolas.

Do ponto de vista educacional, que a circunscrição a uma disciplina, ao espaço de transmissão, não impeça a ultrapassagem, mas, contrariamente, deixe os alunos passarem além [1]. Permita-se, portanto, ser espaço de abertura para o pensamento, transmitindo o que é propriamente filosófico – o sentimento de ignorância.

Que a Filosofia na escola seja, enfim, filosófica, assumindo – como assevera Alejandro Cerletti em seu O ensino de filosofia como problema filosófico (Autêntica) – seu papel político:

[...] para levar adiante a tarefa de ensinar filosofia, uma série de decisões devem ser adotadas. Decisões que são, em primeiro lugar, filosóficas, para em seguida – e de maneira coerente com elas – elaborar os recursos mais convenientes para tornar possível e significativa aquela tarefa. [...] todo ensino de filosofia deveria ser, em sentido estrito, um ensino filosófico.

Ensinar filosofia é dar lugar ao pensamento do outro. Não tem sentido transmitir “dados” filosóficos [...] como se fossem peças de uma loja de antiguidades com a qual os jovens não teriam qualquer relação. Não há sentido em tentar transmiti-los sem vivificá-los no perguntar dos alunos. A lógica do antiquário filosófico, que atesoura joias raras para oferecê-las a alguns poucos privilegiados, emudece o filosofar e mutila sua dimensão pública.

A filosofia não é uma questão privada, ela se constrói no diálogo. Ensinar significa retirar a filosofia do mundo privado e exclusivo de uns poucos para colocá-la aos olhos de todos, na construção coletiva de um espaço público. Por certo, em última instância, cada um escolherá se filosofa ou não, mas deve saber que pode fazê-lo, que não é um mistério insondável que apenas alguns atesouram.

[1] Afirma Filipe Ceppas em seu artigo Desencontros entre ensinar e aprender filosofia, publicado no n. 15 da RESAFE – Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação: “Segundo o antigo dicionário da língua portuguesa, imprenso em Lisboa em 1849, de autoria de Eduardo de Faria, ‘transmitir’ é definido, muito simplesmente, como ‘deixar passar além’ (‘o vidro e os corpos transparentes transmitem a luz’). Essa singela definição [...] diz que transmitir não é passar, mas deixar ultrapassar (deixar passar além)”.

http://www.anpof.org.br/spip.php?article166

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